Em primeiro lugar, faço aqui um breve resumo das práticas comerciais básicas do mercado editorial: no mundo inteiro, a editora, responsável pela publicação de uma obra literária (o livro), é também responsável por estabelecer o preço de revenda para o consumidor final (preço de capa). Uma vez com os preços de capa estabelecidos, a editora fornece suas obras para as livrarias com um desconto acordado entre as partes (preço líquido). A diferença entre o preço de capa (preço de revenda para o consumidor final) e o preço líquido (valor acordado entre a livraria e a editora) constitui a margem que uma livraria tem para pagar suas despesas e seus investimentos: aluguel, folha de pagamento, impostos, benfeitorias, marketing etc. Sem essa margem, nenhuma livraria, independentemente do seu tamanho, da sua localização, ou da sua especialização, terá oxigênio para funcionar.
Isso dito, vamos ao que interessa: talvez você já tenha ouvido falar da Lei Cortez. Chamamos de lei, mas trata-se ainda de um projeto de lei, o PLS 49/2015, que está tramitando, há quase dez anos, no Senado brasileiro.
Mas afinal, do que trata essa lei?
Em poucas palavras, a Lei Cortez estabelece que, nos primeiros 12 meses após o lançamento de um livro, as livrarias – físicas ou virtuais; pequenas, médias, grandes ou gigantescas – não poderão oferecer ao consumidor final descontos superiores a 10% (calculado a partir do preço de capa estabelecido pela editora).
Aqui, é fundamental acrescentar uma informação que os opositores do projeto preferem não citar: uma vez que a restrição proposta será apenas para os lançamentos e somente durante o período de um ano, cerca de 95% dos títulos disponíveis no mercado continuarão a ser vendidos sem nenhuma restrição de desconto. Por outro lado, os 5% restantes, representados pelas novidades atingidas pela lei, farão toda a diferença para a saúde financeira das livrarias e do mercado editorial.
Nessas últimas semanas, a Lei Cortez finalmente ganhou a atenção da grande mídia e da sociedade brasileira. Colunistas, jornalistas, economistas e influenciadores digitais vêm debatendo o assunto. Esse movimento é muito bem-vindo. Mais do que nunca, temos a oportunidade de nos debruçarmos sobre um tema da maior importância para toda a sociedade brasileira.
Para darmos andamento à nossa reflexão, quero, inicialmente, propor três perguntas:
O que motiva as entidades do livro – ABDL, ABRELIVROS, ANL, CBL, LIBRE e SNEL –, assim como milhares de profissionais do setor editorial – autores, ilustradores, livreiros, editores, revisores, tradutores – a se posicionarem a favor da Lei Cortez?
Por que Espanha, França, Portugal, Japão, México, Coreia do Sul, Alemanha, Itália e Argentina vêm adotando, há décadas, medidas semelhantes àquelas propostas pelo PLS 49/2015?
Quais serão as consequências de ficarmos de braços cruzados, assistindo passivamente ao lento e gradual desaparecimento das livrarias brasileiras?
O primeiro ponto a ser destacado é que essa é uma luta para manter vivo um alicerce fundamental da cultura e da educação de qualquer país: o livro. Isso dito, o que está em jogo aqui vai também muito além do livro em si. Ninguém questiona a magia e a importância dos livros. Quase todo mundo, algum dia, já se apaixonou por um.
E onde começa essa mágica? Nas livrarias.
É ali, naquele ambiente de troca de ideias, de busca pelo conhecimento, cercadas por incontáveis histórias e por um mundo infinito de possibilidades, que as pessoas descobrem os livros. Livros que depois serão divulgados nos jornais ou nas mídias sociais, que serão debatidos em sala de aula ou indicados num almoço com os amigos, que virarão séries e filmes.
Tudo começa na livraria!
E é graças ao trabalho das livrarias que essas portas se abrem na vida de milhões de pessoas, todos os dias.
No entanto, a partir do momento que uma multinacional gigantesca, que não vive da venda de livros, decide comercializar esse produto com descontos de 30, 40, 50%, com o único objetivo de aumentar o fluxo de clientes em seu site, as livrarias passam a ter suas existências ameaçadas.
Todos sabemos que estamos falando da Amazon. Mas como mostrar para as pessoas as cruéis consequências de sua atuação predatória? Afinal, não é na Amazon que os consumidores encontram livros pela metade do preço? Como dizer que isso é ruim? Ruim para quem?
A resposta não deixa dúvidas: é ruim para todos!
Ao abrir mão de suas margens e vender livros por um preço que as livrarias não conseguem igualar, a Amazon está destruindo o ecossistema do livro.
Desde sua chegada, em 2012, temos assistido à derrocada da Livraria Cultura, à falência da Saraiva, à fuga da FNAC e ao fechamento de algumas dezenas de livrarias de bairro. Em dez anos, se levarmos em consideração somente as três grandes redes (Saraiva, Cultura e FNAC) o Brasil perdeu mais de 130 mil metros quadrados de livrarias. As que chegaram depois, não conseguiram cobrir nem 30% dessa perda.
Podemos apontar outros motivos para o triste destino das empresas aqui citadas, mas tenham certeza: não foi mera coincidência. E por que não? Porque o Brasil não perdeu apenas espaços de exposição de livros. O país perdeu leitores. A 6ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, divulgada agora em novembro, mostra que 7 milhões de leitores brasileiros sumiram do mapa nos últimos 5 anos. A redução nos índices de leitura aconteceu em todas as classes sociais, faixas etárias e níveis de escolaridade. Pela primeira vez na nossa história recente temos mais não-leitores do que leitores.
E ainda há os que defendem a ação predatória da Amazon como uma forma de reverter essa situação. Que fique registrado: ela só vai piorar, ano após ano. Essa triste realidade vem sendo verificada também nos Estados Unidos, na Inglaterra e em todos os países onde a Amazon está instalada e onde não existem regras – semelhantes às propostas pela Lei Cortez – que impeçam sua atuação devastadora.
Muita gente aponta também que poder comprar livros mais baratos é essencial, pois o livro no Brasil é muito caro. Lamentavelmente, num país onde os incentivos do poder público à leitura são historicamente pífios, onde o livro não tem seu verdadeiro valor reconhecido, esse sentimento é muito comum. As pessoas pagam R$ 30 para estacionar seus carros, mas consideram R$ 70 um ultraje para o livro.
Agora, caro ou não caro, vale dizer que a Amazon tem uma participação importante nessa precificação. Para poder usar o livro como cupom de desconto e atrair clientes que depois vão comprar outros produtos em seu site, ela precisa apertar seus fornecedores (as editoras) e exigir deles margens bem maiores. Não é preciso ser um cientista para saber que as editoras vão necessariamente repassar esse custo para o preço de capa do livro. No fim, a Amazon oferece descontos sobre um preço que ela mesma ajudou a elevar.
E aqui, faço uma rápida pausa: vocês já repararam que a Amazon não vende o último e tão desejado iPhone com um desconto de 50%? Ou um modelo 2025 de um carro da GM, ou um lançamento da Samsung, tudo pela metade do preço de modo generalizado e contínuo? Não seria ótimo se ela fizesse isso e nós consumidores pudéssemos pagar bem menos em todos esses produtos? Não seria incrível se ela vendesse essas mercadorias com os descontos estabelecidos para os livros? Ela não o faz porque se o fizesse seria obrigada a fechar suas portas também. Afinal, nenhuma empresa, nem mesmo a poderosa Amazon, pode abrir mão de suas margens.
E finalmente: ao ir minando o número de livrarias, a Amazon vai, aos poucos, criando um monopólio no setor. Não é à toa que ela consegue margens cada vez maiores das editoras. Muitas delas devem metade do seu faturamento à varejista norte-americana. Todos nós já fomos crianças e conhecemos bem a história do dono da bola, não é mesmo? Quando ele não concorda com algo, acaba a brincadeira. Se, amanhã ou depois, a venda de livros estiver nas mãos de uma única empresa, tudo o que ela deixar de comprar deixará de ser publicado. Afinal, por que publicar se não há para quem vender? O monopólio no setor livreiro contribuirá necessariamente para a destruição da bibliodiversidade, tão fundamental para a construção de uma sociedade culta, sólida, justa e democrática.
Quem quer viver num país sem livrarias? Certamente nem eu, nem você… e muito menos a Amazon! Afinal, ela, Amazon, deixaria de ter seus inúmeros showrooms espalhados pelas ruas e bairros das nossas cidades: as próprias livrarias.
Até quando nos recusaremos a enxergar o óbvio? Até quando daremos espaço para esse comportamento escandaloso e destrutivo? Até quando aceitaremos ler editoriais e artigos mal informados ou simplesmente mal intencionados?
Por tudo o que foi dito aqui, não nos resta outra opção a não ser trabalhar pela urgente aprovação do PLS 49/2015. Não temos tempo a perder!
Quando o assunto é livraria, quanto mais concorrência melhor. É o monopólio que apodrece a terra e faz tudo secar e morrer. Nossa luta não é contra a Amazon. Somos contra ações predatórias, somos contra o dumping, somos contra a destruição do ecossistema livreiro. Acima de tudo, somos absolutamente contra o monopólio num setor vital da cultura brasileira.
Junte-se a nós nessa luta pelo livro, pela leitura, pelas livrarias e pelo futuro que queremos para o nosso país!
Alexandre Martins Fontes é presidente da Associação Nacional de Livrarias (ANL)
Artigo original: Livro News