Projeto que controla o preço de capa dos livros nos 12 meses posteriores ao lançamento avança no Congresso Nacional
Em agosto, a Amazon completou uma década vendendo livros no Brasil. Foi tempo suficiente para unir o setor editorial em defesa de uma pauta comum: a Lei Cortez, que visa a limitar a 10% o desconto sobre o preço de capa dos livros nos 12 meses posteriores ao lançamento. A medida é considerada vital para a saúde financeira tanto das livrarias, atualmente incapazes de competir com os preços do varejo on-line, como das editoras, que vêm se tornando cada vez mais dependentes de um único comprador.
Demanda histórica dos livreiros (parte dos editores resistia a abraçar a proposta), o projeto era conhecido como Lei do Preço Fixo. O nome era impreciso (a lei não prevê tabelamento de preços) e remetia a tentativas desastrosas de controlar a inflação nos anos 1980. Não à toa, o projeto de lei 49/2015 foi rebatizada para homenagear o editor e livreiro José Xavier Cortez, morto em 2021 e defensor da regulação.
De autoria da então senadora Fátima Bezerra (PT), hoje governadora do Rio Grande do Norte, o PL 49/2015 foi desarquivado em 2023 pela senadora Teresa Leitão (PT-PE), já passou pelas comissões do Senado e estava pronto para seguir para a Câmara dos Deputados. Porém, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) solicitou que a peça seja votada primeiro no plenário da Casa, o que depende de decisão da mesa diretora.
A Lei Cortez é apoiada pelas principais entidades representativas do mercado editorial: a Associação Brasileira de Livros e Conteúdos Educacionais (Abrelivros), a Associação Brasileira de Difusão do Livro (ABDL), a Associação Nacional das Livrarias (ANL), a Câmara Brasileira do Livro (CBL), a Liga Brasileira de Editoras (Libre) e o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL). Ao GLOBO, a senadora Teresa Leitão declarou estar confiante na aprovação. Ela disse que as plataformas de e-commerce não serão prejudicadas pela lei, mas admitiu que podem “tensionar” o debate. Procurada, a Amazon não quis se manifestar.
— A lei não é contra a Amazon, é contra o monopólio e a concorrência predatória, venha de onde vier — afirma o livreiro e editor Alexandre Martins Fontes, presidente da ANL. — Eu brinco que a pessoa vai à minha loja na Avenida Paulista, escolhe o livro, vai tomar um cafezinho e faz o pedido na Amazon.
Preservação de livrarias
O setor avalia que os principais ganhos da Lei Cortez devem ser a preservação das livrarias e o incentivo à abertura de novas lojas. Com a proibição dos descontos em livros recém-lançados, espera-se que as lojas físicas absorvam vendas que atualmente são perdidas para o varejo on-line. Os lançamentos representam entre 20% e 30% do faturamento de uma livraria.
Diretor da Globo Livros, Mauro Palermo afirma que o apoio praticamente unânime à lei é resultado de anos de debate e de observação dos desafios do setor.
— Nesses dez anos, nós estudamos mais, conversamos mais com editores de países onde essa lei existe, para entender os benefícios. E também acompanhamos as mudanças nas dinâmicas do mercado — diz Palermo. — Com a pandemia, o e-commerce ganhou força e os descontos tornaram a competição ainda mais desigual.
Segundo a pesquisa Dados do Panorama do Consumo de Livros no Brasil, da Nielsen BookData, 55% dos consumidores optam por comprar livros on-line motivados pela comodidade e pelas ofertas.
Mundo afora, iniciativas como a Lei Cortez estão em vigor há décadas, desde quando a ameaça às pequenas livrarias eram as grandes redes, como a francesa Fnac. Em 1981, a França aprovou a Lei Lang, que limita os descontos a 5% e, em 2021, proibiu plataformas de e-commerce de vender livros com frete grátis. Na Alemanha, os descontos são proibidos nos primeiros 18 meses de vida do livro. No México também (ainda que a lei seja menos respeitada no interior do país). A Argentina permite descontos máximos de 10% apenas em eventos literários e em caso de obras declaradas de interesse público. No Reino Unido, durante quase todo o século XX, vigorou o Net Book Agreement (NBA), derrubado judicialmente em 1997. Entre o fim do NBA e 2009, cerca de 500 livrarias britânicas desapareceram.
Segundo a ANL, o número de livrarias no Brasil caiu de 3.095 para 2.200 entre 2014 e 2021. Há por volta de uma livraria para cada 96 mil brasileiros — a proporção recomendada pela Unesco é de uma para cada 10 mil habitantes. A ANL estima que, devido ao fechamento de grandes redes como Fnac, Saraiva e Cultura (que hoje sobrevive com apenas duas lojas recém-inauguradas em São Paulo), o Brasil perdeu 130 mil m² em livrarias.
— Para os editores, a sobrevivência das livrarias físicas é fundamental, pois elas funcionam como showroom para os lançamentos — diz Sônia Machado Jardim, presidente do Grupo Editorial Record.
Bibliodiversidade
Com menos vitrines, as editoras se tornam mais dependentes da Amazon para escoar suas apostas — e a varejista já se provou mais eficiente para vender o fundo de catálogo do que livros novos.
Para Dante Cid, presidente do SNEL, a restrição aos descontos somada ao aumento da quantidade de livrarias deve resultar também em mais bibliodiversidade, isto é, variedade de títulos.
— Se a editora tiver mais vitrines, o que só a livraria física oferece, e uma expectativa melhor quanto ao preço que será praticado, ela poderá se arriscar mais na hora de lançar novos títulos — diz ele.
O mercado editorial sabe que a limitação dos descontos é uma medida impopular. A consulta pública disponível no site do Senado mostra que quase 60% das pessoas que responderam à enquete são contrárias ao projeto. Na tentativa de reduzir a oposição, o setor lembra que a lei só afetaria o preço dos lançamentos, que representam entre 5% e 6% dos livros à venda. E que o preço médio do livro não deve subir — inclusive, há quem aposte no contrário.
— A experiência dos países que possuem leis de proteção de preços indica que a médio prazo não há um aumento. Pelo contrário, a presença de um número maior de varejistas permite uma competição saudável, em que a qualidade do serviço, o acervo e experiência de compra são os fatores mais importantes — diz Marcos da Veiga Pereira, sócio-diretor da Sextante.
Um estudo da Universidade de Oxford publicado em março comparou países da União Europeia onde há e onde não há limitação de descontos: os primeiros reportaram aumento nas vendas, preços menores (e que sobem mais lentamente) e um mercado editorial mais competitivo e diverso.
Editores ouvidos pelo GLOBO afirmaram que os descontos vultosos praticados no e-commerce têm, na verdade, pressionado para cima o preço médio do livro.
— Quando um varejista pressiona por mais desconto, a reação natural das editoras é elevar o preço para compensar e conseguir pagar as contas. O resultado é que o livro acaba ficando mais caro na livraria, que não pode dar muito desconto, e mais barato no e-commerce — diz o editor e livreiro Diego Drumond, vice-presidente da CBL.
O preço médio do livro no Brasil fechou em R$49,63 em novembro segundo a Nielsen BookData. Com a aprovação da Lei Cortez, o mercado aposta mais numa “estabilização para baixo” do que numa redução substantiva dos preços (pressionados atualmente por outros fatores, como aumento dos custos de produção).
Primeiro passo
Editor da Lote 42 e livreiro da Banca Tatuí, João Varella alerta que a Lei Cortez é um “abre-alas” e não deve ser vista como uma “panaceia” para todas as dificuldades do mercado editorial brasileiro. A lei, defende ele, precisa ser parte de um esforço para fomentar a cultura do livro no Brasil e deveria ser complementada por outras medidas, como a limitação dos descontos em lançamentos em feiras do livro e bienais (que ficaram de fora do projeto) e a isenção de IPTU para livrarias, que cada vez mais têm atuado como centros culturais capazes de revitalizar seu entorno.
— A Lei Cortez não pode ser vista como um fim, ela é só o primeiro passo de uma caminhada — afirma.
Por Ruan de Sousa Gabriel